20080519

basta fechar os olhos

Viajar é muito útil, faz trabalhar a imaginação. O resto, apenas decepções e fadigas. Esta nossa viagem é inteiramente imaginária. Eis a sua força.
Vai da vida à morte. Homens, animais, cidades e coisas, tudo é imaginado. Um romance, nada mais que uma história fictícia. Di-lo Littré, que nunca se engana.
À primeira vista todos podem fazer o mesmo. Basta fechar os olhos.
É do outro lado da vida.

É com esta pretensiosa referência celiniana que se oficializa o cessar de actividades no entrepontos. Não creio que seja uma interrupção definitiva. Hasta luego.

20080508

birmânia

As últimas notícias sobre o ciclone na Birmânia apontam para cem mil mortos. Sou incapaz de conceber cem mil mortos.

20080426

sloterdijk

Em miúdo li que a rede de transportes da Bélgica e da Holanda é tão densa que, vista do espaço, toda a zona se sintetiza num borrão de luz. Lembro-me disto enquanto constato que o comboio não chega e que posso perder o avião de regresso a Barajas. Passei o dia a andar por Amesterdão, atravessando canais, observando os canónicos Van Gogh e espreitando as proverbiais prostitutas. Estou cansado, cheio de informação nova, sinto a melancolia da despedida e tenho frio, um frio diferente daquele a que me acostumei em Madrid.
Dirijo-me a um funcionário que está na plataforma. Felizmente fala inglês, como toda a gente nesta terra plana. Oiça, esta não é a linha para Schiphol? Confirma. E o comboio, onde está? Olha para mim espantado.Pega no telemóvel e passa cinco minutos a falar naquela língua incompreensível. A dada altura tenho a sensação de que conversa sobre outros assuntos. Sinto-me desprotegido. O meu francês é rudimentar o quanto baste para descodificar bocados de conversa; do italiano vou entendendo um trecho de tempos a tempos. Aqui não consigo ter qualquer noção do que se diz: não tenho referências, estou à mercê da compreensão dos holandeses e da sua disponibilidade para falar inglês.
Há trabalhos na linha, atira-me o homem, depois de desligar. Trabalhos na linha? E como é que eu vou para o aeroporto? Vá à linha quinze, apanhe o comboio, saia em Amsterdam Sloterdijk, aí vai estar um autocarro. O seu bilhete é válido, não se preocupe. À nossa volta tinha-se juntado um punhado de outros viajantes estrangeiros. Tirando um deles, que se põe logo a andar, todos parecem mais desorientados do que eu. Não deixo de sentir uma cínica satisfação por isso.
Zarpo da inutilizada plataforma rumo à linha quinze e entro no comboio. Ele arranca vagarosamente. Faltam menos de duas horas para o meu avião e eu faço contas à vida. É noite e eu faço neste momento parte do gigantesco borrão de luz que é a rede ferroviária do Benelux. Dirjo-me a uma estação nos subúrbios de Amesterdão chamada Sloterdijk; Peter Sloterdijk é o nome de um filósofo alemão de quem li um excêntrico texto sobre biotecnologia e terrorismo.

20080414

sprint



Seis minutos de adrenalina.

20080401

photographing you photographing me



Esta é uma das melhores cenas que vi nos últimos tempos. O filme é Peeping Tom de Michael Powell.

20080323

entardecer

Sexta-feira santa, cansado da inércia doméstica, saio. Em Madrid passar a porta do prédio equivalia a diluir-me num magote. Hoje, nesta pacata zona de classe média-alta, não me cruzo com ninguém excepto algumas esvoaçantes gaivotas, sinal de mau tempo no rio. Apanho o metro e mergulho nas desventuras de Madame Bovary. O destino é vago; quero um sítio onde possa ler. A apneia flaubertiana é curta, vinte minutos e saio no Rossio. Para os lados das Portas de Santo Antão muitas dezenas de muçulmanos conversam animadamente. São escrutinados pelo olhar pós-imperial de ingleses afundados em canecas de cerveja.
É feriado e calculo que haja uns quantos cafés fechados. Opto por um lugar habitual perto do Carmo e sento-me no pátio interior. Entro de novo em Flaubert e lá me deixo ficar. Até que o ruído aumenta e a minha leitura é perturbada por uma conversa sobre decoração de interiores. Olho em redor: andam todos pelos trinta anos e procuram passar a imagem de um estilo casual. São vendedores imobiliários, designers de logótipos e gestores de risco, tudo ofícios dignos e interessantes. O que me incomoda é estar enfiado no meio de uma corja de yuppies. Pago e saio, mastigando uma zanga de alvo difuso. Sopra um vento frio e o entardecer avança veloz. Desisto de ler e resolvo perseguir uma boa panorâmica do pôr-do-sol. Um desígnio piroso que justifico com a minha recente chegada a Lisboa.
Desço o Chiado, cruzo a Rua da Vitória, subo na direcção de Alfama, faço becos com nomes de santos e nobres a caminho da Costa do Castelo. Apetece-me andar e faço um trajecto intrincado e pouco directo. Uns espanhóis pedem-me indicações e eu aproveito para soltar o castelhano do seu encarceramento. Contorno as muralhas, acelero até à Graça e chego ao miradouro a tempo de apanhar a parte final da rota solar. Uma pequena multidão de turistas tira fotografias e alguém tenta tocar a Hey Joe do Jimi Hendrix com uma guitarra acústica. Gosto dos jogos de espelhos que Lisboa permite: no miradouro de São Pedro de Alcântara, na colina do lado de lá, alguém há-de estar a mirar na nossa direcção. O sol some-se e a temperatura desce.
Enterro as mãos nos bolsos das calças e desço pelo Caracol da Graça até à Mouraria. Uns quantos encapuzados abanam o pescoço ao ritmo de kizomba. Oiço um brasileiro lamentar-se: tem documentos retidos na embaixada porque vinham em nome de Luiz e não de Luís. Chego ao Martim Moniz e penetro no piso subterrâneo do caleidoscópico centro comercial. Os indianos fecham as mercearias e uma família de ciganos negoceia com um revendedor chinês. Apanho o metro de volta à minha tranquila zona residencial.

20080320

cem por cento nacional

Tiro do congelador umas costeletas de porco embaladas. O pacote ostenta um autocolante com uma bandeira portuguesa debaixo da qual se lê um orgulhoso 100% nacional- nascido, criado, alimentado, abatido e desmanchado em Portugal. Na minha cabeça forma-se a imagem de um robusto e irascível suíno luso, um nobre animal de ascendências longínquas. A carne dos seus antepassados era salgada para depois alimentar os marinheiros na época dos Descobrimentos; Nuno Álvares Pereira celebrou o triunfo de Aljubarrota comendo o lombo de um membro desta linhagem. E aqui estou eu, gerações e séculos volvidos, resistindo à tentação do indecoroso e sabujo porco castelhano, prestes a cozinhar uma parte do distinto e venerável animal português.

s. (1)

Conheci-a numa festa de franceses: as pessoas, o estilo delas, a música que se ouvia e aquele modo particular de se ficar bêbedo. Ela, vinda de Sevilha, e eu, deste rectângulo entalado entre Espanha e o Atlântico, éramos as excepções àquela homogeneidade. Saímos juntos três ou quatro vezes, as suficientes para que ela partilhasse comigo os seus problemas: a anorexia, os infelizes anos do colégio, as infidelidades da mãe, o esgotamento do pai, a promiscuidade das irmãs, o ambiente fechado da aristocracia andaluza. Não se limitava à comiseração. Falava-me também dos passeios pelo Mediterrâneo no iate do pai e dos livros de Javier Marías.

20080314

a cidade e as serras

E rolávamos ainda, quando o Duque de Marizac, a cavalo, ergueu a bengala, estacou a nossa vitória para perguntar a Jacinto se aparecia à noite nos «quadros vivos» dos Verghanes. O meu Príncipe rosnou um «não, parto para o sul...» que mal lhe passou de entre os bigodes murchos... E Marizac lamentou--porque era uma festa estupenda. Quadros vivos da História Sagrada e da História Romana!... Madame Verghane, de Madalena, de braços nus, peitos nus, pernas nuas, limpando com os cabelos os pés do Cristo! -O Cristo, um latagão soberbo, parente dos Trèves, empregado no Ministério da Guerra, gemendo, derreado, sob uma cruz de papelão! Havia também Lucrécia na cama, e Tarquínio ao lado, de punhal, a puxar os lençóis! E depois ceia, em mesas soltas, todos nos seus trajes históricos. Ele já estava aparceirado com Madame de Malbe, que era Agripina! Quadro portentoso esse -Agripina morta, quando Nero a vem contemplar e lhe estuda as formas, admirando umas, desdenhando outras como imperfeitas. Mas, por polidez, ficara combinado que Nero admiraria sem reserva todas as formas de Madame de Malbe... Enfim colossal, e estupendamente instrutivo!
Acenámos um longo adeus àquele alegre Marizac. E recolhemos sem que Jacinto emergisse do silêncio enrugado em que se abismara, com os braços rigidamente cruzados, como remoendo pensamentos decisivos e fortes. Depois, em frente ao Arco de Triunfo, moveu a cabeça, murmurou:
-É muito grave, deixar a Europa!


(Eça de Queiroz)

20080310

cuestión

Escribir servía más bien como método de escape al monopolio del castellano en mi entorno. ¿Y ahora qué?

malito (3)

Estou constipado há duas semanas. Não me dói a cabeça nem tenho a garganta arranhada, sou só vítima de um contínuo acumular de lixo biológico no nariz. Esta ocorrência contraria a minha pretensão de ser imune a isso a que se chama doenças.

20080308

la trama

Um pequeno conto de Jorge Luis Borges chamado "La trama" que talvez agrade à malta da Trama:

« Para que su horror sea perfecto, César, acosado al pie de la estatua por lo impacientes puñales de sus amigos, descubre entre las caras y los aceros la de Marco Bruto, su protegido, acaso su hijo, y ya no se defiende y exclama: ¡Tú también, hijo mío! Shakespeare y Quevedo recogen el patético grito.

Al destino le agradan las repeticiones, las variantes, las simetrías; diecinueve siglos después, en el sur de la provincia de Buenos Aires, un gaucho es agredido por otros gauchos y, al caer, reconoce a un ahijado suyo y le dice con mansa reconvención y lenta sorpresa (estas palabras hay que oírlas, no leerlas): ¡Pero, che! Lo matan y no sabe que muere para que se repita una escena. »

20080301

charles mingus



Solo dancer.

lisboa

Quase cinco da manhã no Marquês de Pombal. O taxista dorme e eu tenho de bater na janela para que ele me abra a porta. Na rádio passa a Sangue Oculto dos GNR, aquela em que o Reininho faz um dueto com um espanhol. A música contribui para aumentar a minha confusão linguística. Com a voz ensonada, o taxista quer saber que caminho prefiro e pelo tom deixa entender que está a repetir a pergunta. Cá fala-se muito mais baixo: em Madrid teria sido impossível eu não ouvir à primeira.

barajas

Virgínia, a rapariga do check-in, informa-me do valor que tenho a pagar por excesso de bagagem. Arregalo os olhos e pergunto se posso comprar outra passagem e ter direito a mais vinte quilos. Ela responde que não, que cada pessoa só pode comprar um bilhete, que não pode haver passageiros fictícios. Em desespero de causa, ponho a seguinte questão: e se eu fosse um violoncelista, um contrabaixista e quisesse levar o instrumento junto de mim? Virgínia não se dá por achada e diz-me que nesse caso registaria um passageiro chamado "Contrabaixo".

20080228

madrid

Chego a casa depois de mais um concerto no Populart. Cinco meses volvidos em Madrid e as últimas noites são idênticas às primeiras. O jazz, as suas escalas improváveis, a cumplicidade entre o contrabaixo e a bateria, o saxofone voando baixinho. Há diferenças, claro. Os primeiros tempos foram solitários. Ao fim destes meses acabei por conhecer gente e fazer amigos. Hoje assisti ao concerto acompanhado. Mas o gregarismo contínuo cansa-me e preferi ir várias vezes sozinho ao Populart, ao Prado ou à Filmoteca. Ainda assim, a minha vida tornou-se progressivamente menos isolada. Escrevi pouco ou nada sobre esta gente de quem me aproximei. Não o farei agora, porque despejar nomes de pessoas que aos leitores nada dirão é pouco menos que inútil.
Já em relação aos meus companheiros de casa a opção foi outra. De resto, sei que lhes devo uma boa parte da audiência do entrepontos. Manuela, José, Jorge e Leonardo cá ficarão. Na minha memória guardo muitos episódios do 19 da Calle de Toledo que não partilhei. Às vezes por falta de tempo, outras de engenho, outras de certeza quanto à legitimidade de expor assim as vidas desta gente. O caso de Jorge, o mexicano, é exemplar: à medida que nos fomos aproximando constatei que não me parecia correcto transcrever as nossas conversas. E então suprimi-o. Um resumo meramente espacial: ao longo de Janeiro e Fevereiro, Jorge foi a Israel, mudou de casa e zarpou para um mês no México e Las Vegas. Foi porventura a amizade mais sólida que criei em Madrid.
Estabeleci uma grande cumplicidade com Leonardo. Suponho que a espinha dorsal desta relação tenha sido a facilidade de comunicação. Leonardo adapta-se muito depressa às circunstâncias e rapidamente arranja esquemas de modo a conseguir o que quer. Cria narrativas e alter-egos que fazem lembrar o Calvin. Se diz sentir algum perigo no ar, fantasmas rondando a casa, veste-se como um ninja e destrói os maus espíritos à espadeirada. Se lhe apetece comer um dos meus chocolates argumenta que precisa de energia para ser capaz de me proteger dos monstros que andam pelo quarto. Claro que na maior parte das vezes os esquemas têm como único fim conseguir jogar no computador. Mas mesmo nisso nos demos bem: em jogos de plataformas, eu ficava com as direcções e ele com os ataques ou os saltos. Se jogávamos flippers, ele ficava com o esquerdo e eu com o direito. À medida que fazíamos pontuações máximas ensinei-o a escrever os nossos nomes e outras palavras no teclado. Pelo que me é dado a conhecer de miúdos, Leonardo conjuga a tal rapidez de adaptação com uma inteligência e uma memória pouco comuns. Mesmo que passe dias sem escrever nada, tem uma ideia da zona do teclado onde está cada tecla. Ontem ofereceu-me um dos seus bonitos desenhos. Aos quatro anos e meio, Leonardo tem maior capacidade artística que eu aos vinte e um. Na folha, totalmente preenchida de cores, vê-se a forma de uma pirâmide situada num vale. Leo explicou-me que era o Egipto e que mo ofereceu para que eu nunca esqueça que as múmias existem.
Amanhã apanho o A320 da Vueling e comigo levo dezenas de quilos de bagagem. Parte significativa desta carga são livros, muitos deles comprados por cá. Os livros são a expressão mais visível do meu consumismo. E é isto. Não sou pessoa de extrair morais e projectá-las depois de modo grandiloquente. Se tirei conclusões destes meses, elas ficarão para mim. A agenda do meu telemóvel espanhol não tem nenhuma “casa”. Achei mais apropriado registar uma entrada como “Lisboa” e outra como “Toledo”. Estou triste por me ir embora, gostava de cá passar mais tempo. E com esta frase acabo de arruinar a minha tentativa de fazer um texto frio, solto e sem lamechices.

josé

José está abaixo de teso. Os seus tempos gloriosos de empresário da noite são cada vez mais remotos; agora encontra-se metido em vários esquemas a tentar ganhar alguma coisa. Hoje enquanto batia ovos, punha azeite numa frigideira e temperava bifes disse-me joder, tío, que hoy tengo ganas de matar a la mitad, vamos, a tres cuartos de Madrid.
Depois de jantar, Leonardo decretou que queria ver desenhos animados. José disse que não, já eram horas de dormir. Leonardo replicou que nesta casa era ele o chefe. José olhou-o desencantado e corroborou:
tienes razón, en esta casa manda el hijo, la madre, el espíritu santo... El padre es el único que no manda nada.

20080226

facultad de ciencias políticas y sociología

Hoje tratei das últimas burocracias administrativas na Complutense. Foram uns meses bem passados. Tive bons professores, aprendi bastante e tornei-me amigo de meia dúzia de pessoas. Também foi curioso estudar numa faculdade tão radicalmente politizada. Venho da FCSH, uma instituição que conserva, ainda que de modo minguante, uma mística de insurreição esquerdista. Se a Nova já me parecia calma, depois deste semestre acho-a subserviente. O ambiente na Complutense atinge níveis de crispação PRECquianos.
O contexto do vídeo abaixo: Rosa Díez saiu recentemente do PSOE para fundar um novo partido, o Unión, Progreso y Democracia. Como se pode ler na apresentação do site, esta formação procura superar o "bipartidismo imperfeito" do sistema político espanhol. Um dos seus baluartes é contrariar o "abandono da coesão nacional" que está a ser levado a cabo para satisfazer o nacionalismo e as suas imitações regionalistas".
Esta posição enfurece muitos daqueles que foram meus colegas ao longo dos últimos meses que se acharam no direito (na obrigação!) de boicotar uma conferência de Rosa Díez. Ocupações de salas, interrupções de aulas e ruidosas marchas pelos corredores são métodos habituais de acção estudantil. O tom dos cartazes e dos gritos de ordem chega ao apocalíptico e ao maniqueísta. Fala-se muito em "assembleias abertas", "democracia participativa", "combate ao fascismo" e "fim da repressão". Reina um discurso de isolamento que raia o paranóico. A faculdade torna-se, como a aldeia de Astérix, o único foco de resistência ao invasor. "Fascistas fora de la Universidad", gritavam uns quantos que procuraram impedir a participação de Díez. A polícia veio até à porta proteger a saída da líder da UPD. "Policias asesinos, perros del capital" é, por sinal, uma das mensagens mais espalhadas pelas paredes do edifício.

toledo (2)

Then he might manage a journey to Spain. He wanted to see the pictures which he knew only from photographs; he felt deeply that El Greco held a secret of peculiar moment to him; and he fancied that in Toledo he would surely find it out.

(Somerset Maugham, Of Human Bondage)